[...] A vida tem sons que pra gente ouvir
Precisa aprender a começar de novo
Se desfazer de coisas, quando a mudança de espaço pede, não é uma tarefa fácil. Quando perguntados sobre nossa capacidade de desapego, a maioria de nós (e aí me incluo, não fujo à regra) declara que não se apega a objetos, móveis, roupas, enfeites e tudo o mais – é capaz de descartar sem dó ne piedade.
Mas não é bem assim. Ao longo da vida, nos cercamos de coisas que podem ser facilmente descartadas porque são temporais, de moda ou sem nenhum vínculo afetivo; outras, porém, envolvem uma relação emocional que não pode ser negligenciada.
Quanto mais tempo de vida, maiores os vínculos que criamos com alguns objetos que fazem parte da nossa história, como é o meu caso. E não é pelos objetos em si, mas pelo que eles significam, pela parte de nós que eles representam. É aquele conjunto de peças que compõem o nosso quadro, pintado ao longo de toda uma vida.
Para mim, pode ser um livro que a cada releitura me traz novas descobertas, uma xícara que lembra o afeto do café com leite da casa da minha mãe, uma partitura de flauta que me traz de volta o prazer de tocar um instrumento, ou até mesmo um velho conjunto de crayons que me aviva o gosto pela pintura.
Os objetos não importam e sim seus significados, pois são eles que compõem a minha identidade. Retalhos que costuram a veste com que me cubro e distinguem quem sou. Descartar os meus haveres simbólicos é deixar para traz o que eles me trouxeram de sabedoria, de ensinamentos, de vivências, de afetos.
Por isso a importância da escolha do que levar comigo e do que me desfazer. A seleção dos objetos pode ter sido alterada no decorrer do tempo, mas sempre de forma a que o valor figurativo de seu conjunto seja capaz de compor o que sou, exprimir minha essência de forma harmoniosa.
Na hora da mudança, esses pertences podem caber em um grande baú ou numa pequena mala, não importa. O que vale é que com eles eu me reconheça e me sinta vital, capaz de trilhar o novo caminho com o espírito leve e recompor a minha tela em outro lugar, pois a vida [...] É como tocar, o mesmo violão, e nele compor uma nova canção (Roupa Nova).
Que texto irretocável. Que pensamentos tão lúcidos. "Compor uma nova canção" é uma brisa que faz balançar as folhas da nossa emoção! Parabéns Ana Helena Reis! De coração: você é uma escritora admirável. GP